“Manhãs de Setembro” e a relação entre liberdade e egoísmo

Manhãs de Setembro

Como uma música interpretada por Vanusa em 1973 dialoga com uma série protagonizada 48 anos depois pela cantora (e atriz estreante) Liniker? Ambas falam, em essência, sobre a busca pela liberdade. Tanto na letra da canção, quanto no roteiro da trama, há o desejo de um eu esquecido e privado do protagonismo de sua própria vida de ser livre, independente. E no decorrer dos cinco episódios de “Manhãs de Setembro”, a nova série da Prime Vídeo, o espectador busca entender como esta busca pode ser complexa em algumas realidades.

 

Cassandra (Liniker) é uma motogirl da cidade de São Paulo, que aos trinta anos de idade e, apesar dos perrengues com o trabalho, está feliz por finalmente estar encontrando a sua independência tanto financeira quanto pessoal. Ela alugou o seu primeiro apartamento, começando a decorá-lo como sempre sonhou, está apaixonada por um homem que também a ama (Ivaldo, interpretado por Thomaz Aquino) e segue fazendo bicos com o que lhe dá prazer: sendo cover da cantora Vanuza em boates noturnas. Porém, o rápido período promissor é abalado com uma notícia que pode acabar com seu sonho de liberdade: Leide (Karine Teles), uma ex-namorada, bate em sua porta acompanhada de Gersinho (Gustavo Coelho), um garoto de dez anos de idade, dizendo que o menino é filho de Cassandra.

A partir daí acompanhamos o conflito de Cassandra em assumir ou não um filho a esta altura da vida. Enquanto ela vê a sua individualidade indo por água abaixo, Leide, que mora com Gersinho dentro de um carro, na rua, vê no reencontro a possibilidade de sua própria liberdade, ao ter alguém para dividir as responsabilidades da criação de um filho, até então estava em condições. E as atitudes de Leide, embora sempre questionáveis, não nos afastam do sentimento genuíno entre mãe e filho que ela tem com Gersinho. Na verdade, suas ações nos fazem refletir sobre os fracassos e conquistas de ser mãe em tais condições. Muito do comprar a personagem, entendendo-a, ainda que se incomodando com ela, se dá graças à atuação de Karine Teles, sempre atraindo as nossas atenções para suas interpretações tão reais, tão convincentes.

 

Gersinho é interpretado com doçura e sinceridade por Gustavo Coelho, que nos traz a sensibilidade e esperança necessárias em tal realidade, mas que parecem esquecidas – ou retiradas – dos personagens mais velhos. Ele está animado com a ideia de se aproximar de Cassandra, faz planos, se projeta em sua figura, a admira e tem a vontade genuína de ser reconhecido como sua família. Mas Cassandra, além de não o reconhecer como filho (o chamando apenas de “moleque”), também não quer sequer vê-lo próximo a ela.

Aí está a genialidade do texto de Alice Marcone, Marcelo Montenegro, Josefina Trotta e Carla Meirelles, trazendo personagens tão dúbios, tão profundos, ainda que em apenas cinco episódios de trinta minutos cada. A gente se pega em um dilema entre personagens egoístas e ao mesmo tempo tão necessitados dessas individualidades. Alugar um primeiro apartamento para viver sozinha aos trinta anos de idade pode não parecer um motivo suficiente para Cassandra rejeitar a chegada de um filho, que parece precisar tanto de sua presença. Muitas cenas soam, inclusive, como egoísmo de sua parte, pensando tanto em si, tendo medo de abrir qualquer espaço de sua nova vida para alguém tão vulnerável quanto ela. Mas entendendo a sua realidade, sendo uma mulher trans, preta e pobre, essas pequenas conquistas de liberdade e de independência significam muito. Não dá pra julgar o que é justo ou não em suas decisões.

As melhores cenas da série acontecem entre Cassandra e Gersinho. As pequenas conquistas do menino, aflorando o lado materno de Cassandra, são lindas de ver. A cena embalada ao som de “Paralelos” (1975) no terceiro episódio é emocionante pela sua delicadeza, com certeza um ponto alto da trama. A trilha sonora, inclusive, merece destaque. A voz e a interpretação de Liniker dão novas camadas aos clássicos de Vanusa.

 

Por fim, tendo deixando claro o ótimo plot principal, vamos a um detalhe do roteiro que fez o virginiano se questionar e criar teorias malucas? Vanusa está presente na série não apenas como trilha, mas também como a “voz da consciência” de Cassandra (interpretada voz-off por Elisa Lucinda). Já no primeiro episódio, entendemos a admiração de Cassandra por Vanusa, mas tal ligação não me parece tão forte assim a ponto de a cantora virar uma espécie de guia em sua jornada. Pensando nisso, um detalhe me deixa intrigado: Cassandra possui uma foto antiga pregada em sua parede, da própria Vanusa abraçando uma mulher que parece ser sua mãe. Será que haverá algo relacionado a isso em uma possível nova temporada? Será a voz da consciência a própria mãe de Cassandra, que será interpretada por Lucinda na temporada seguinte, aprofundando a relação da protagonista com a maternidade?

 

Aliás, haverá uma temporada seguinte? Torçamos para que sim. Mas, ainda que não haja, vale a pena assistir os episódios já disponíveis. Grande acerto do Prime Vídeo!

Você pode saber mais sobre séries brasileiras, clicando aqui!

ÚLTIMAS

NOTÍCIAS RELACIONADAS

COMENTE ESTE POST

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COMPARTILHE

VOTE