Filmes que retratam momentos históricos carregam uma responsabilidade adicional em sua execução. É claro que não se trata de um documentário; a ficção é necessária. Ela serve para desenvolver o roteiro e contar a história de forma envolvente. No entanto, é fundamental ter cuidado. Cineasta e roteirista devem evitar sacrificar a veracidade histórica em nome da trama, ou vice-versa. Malês, dirigido por Antônio Pitanga e escrito por Manuela Dias, assume o desafio de narrar a maior insurreição de escravizados do Brasil, a Revolta dos Malês, ocorrida em 1835.

Sinopse
Ambientado na vibrante Salvador de 1835, Malês acompanha a jornada de dois jovens muçulmanos. Eles são brutalmente separados após serem arrancados de sua terra natal na África e escravizados no Brasil. Separados por um destino cruel, os protagonistas lutam para sobreviver e se reencontrar. Durante essa luta, eles se envolvem na Revolta dos Malês, a maior insurreição de escravizados da história brasileira. O filme é um drama baseado em fatos históricos que retrata a resistência, a fé e a busca incessante por liberdade.

A Crítica
Ao analisar a execução da obra, percebemos um balanço delicado entre a fidelidade histórica e as exigências da narrativa de ficção. Neste sentido, Malês se estabelece de maneira mais eficaz como retrato histórico do que como dramaturgia pura. Embora um conflito romântico inicial pareça guiar a narrativa, a trama se desenvolve de modo um tanto confuso. O protagonismo não fica muito claro, afinal. Além disso, o clímax se resolve de forma apressada.
Personagens apresentados como fundamentais, como o papel de Antônio Pitanga, possuem relevância, mas não exercem o protagonismo de fato, como o cartaz indica.
Ainda assim, o filme demonstra um trabalho competente. A audiência consegue entender o que acontece e para onde a história caminha. O coletivo se firma como o verdadeiro protagonista da narrativa. O conflito é bem demarcado, e os interesses de ambos os lados são estabelecidos com clareza.

A direção de Antônio Pitanga está repleta de boas intenções, mas ainda carece de dinamismo em alguns momentos. Por exemplo, trechos longos de diálogos são encenados com os atores em meia-lua. A câmera capta tudo frontalmente, o que remete quase a uma peça de teatro. A direção de fotografia também não imprime uma marca forte. As cenas, aliás, parecem trazer assinaturas distintas. Cores e intenções mostram-se pouco definidas e uniformes ao longo da projeção. Há também visíveis problemas de continuidade e de montagem.
Existem, no entanto, grandes destaques nas atuações. Isto é ótimo, em se tratando de um filme com protagonismo coletivo. Rocco Pitanga, Bukassa Kabengele e Rodrigo de Odé são a força-motriz do filme e da revolta construída em cena. Sobretudo Rodrigo, com uma força cênica protagonista sempre que aparece. Além disso, a bem-vinda participação de Patrícia Pillar merece ser notada. Juntamente com Erom Cordeiro, eles formam uma dupla repugnante de antagonistas.
Malês é repleto de boas intenções e acerta em algumas delas. É louvável a busca por uma dramaturgia que pudesse tornar o roteiro mais folhetinesco que documental, apesar de “não chegar lá” plenamente enquanto ficção. O romance, por exemplo, que é o ponto inicial do longa-metragem, é mal desenvolvido. Abayome (Samira Carvalho) fica um grande tempo fora de cena e quando finalmente se reencontra com Dassalu (Rocco Pitanga), o filme privilegia uma cena de sexo problemática. Além de a personagem ter sido violentada sexualmente pouco antes – não gerando qualquer consequência dramatúrgica -, a mulher é mostrada inteiramente nua, enquanto o homem tem intimidades preservadas (como de praxe no cinema brasileiro).
Mas, apesar destes pontos, e somando o que entendo da revolta às análises de historiadores sobre a obra, é possível afirmar que o longa-metragem é bastante competente em sua proposta historiográfica.
Impressão Final
Malês cumpre o papel de retratar a Revolta dos Malês com competência histórica e a força do protagonismo coletivo. Embora falhe em alguns pontos da direção e estrutura de roteiro, suas atuações e boas intenções elevam a obra a um retrato importante da resistência negra no Brasil.
Nota: 3/5
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